Caetano Veloso popularizou no Brasil a afirmação de Martin Heidegger de que só se pode filosofar em alemão, mesmo com parte da boa filosofia tendo sido escrita em outras línguas, inclusive por alemães. No mundo do vinho, algumas pessoas têm uma posição parecida. Acreditam que só se possa vinificar em francês, enquanto outros dizem que em italiano é admissível. Mas o mundo mudou. O mundo do vinho resiste, mas se modifica também.
Isso só não acontece entre a maioria dos produtores de uvas e vinhos franceses, que se recusam a ouvir outras opiniões que não as suas sobre o tema. Se é exagero dizer que os parisienses nem respondem a interpelações em inglês, não é quando se trata de vinho. Tive a oportunidade de vivenciar essa situação num congresso internacional em que dois franceses fizeram as suas apresentações em sua língua materna, apesar de não haver tradutores.
Todavia, mais do que se negar a falar em outra língua que não o francês, a questão é mais ampla. Meu ponto é sobre postura. Essa que recém citei é, no mínimo, arrogante: eles sabem sobre vinho e se alguém quiser ouvir tem de se adaptar a eles. E esta é a postura de boa parte dos produtores de uvas e vinhos do mundo. Organiza-se a oferta e colocam-se informações nos rótulos de acordo com o que os especialistas entendem. Azar de quem não for especialista. Aliás, os ignorantes que tomem cerveja. Ou cachaça, já que vinho é um "produto cultural". E quanta cultura tem de se ter para comprar uma garrafinha de vinho...
Com tal postura, os franceses dominaram o mundo do vinho por algumas centenas de anos. São também os maiores consumidores. Por enquanto. Mas o consumo cresce mesmo hoje em dia nos Estados Unidos, no Reino Unido e nos países nórdicos, tradicionais consumidores de cerveja. As vendas não crescem lá devido a um processo de educação em massa para o ensino de língua francesa, nem por causa da massificação do conhecimento das quatrocentas e tantas denominações de origem francesas. Esses mercados crescem porque os produtores de vinhos do dito Novo Mundo deixaram de tentar impor regras para buscar a compreensão das regras dos consumidores.
As duas cidades onde se encontra a maior variedade de vinhos do mundo são Nova Iorque (EUA) e Londres (Reino Unido). Nas duas cidades, uma das tarefas mais difíceis é encontrar nova- iorquinos e londrinos. São duas cidades de tendências. Nelas, as pessoas não seguem tendências, ditam-nas. Acreditam em si mesmas e vestem o que acharem melhor, comem o que for mais rápido e bebem o que gostam (os vinhos tradicionais assim perdem espaço para vinhos leves, frutados e com rótulos que parecem de refrigerantes).
Pude conferir de perto esse cenário numa das feiras mais importantes de vinhos do mundo, a London International Wine Fair. Lá, ficou claro que as marcas de vinhos que crescem nos mercados não são francesas: "Yellow Tail" (rabo amarelo), "Flip-Flops" (sandálias de tiras) e "Pink Elephant" (elefante cor-de-rosa) são bons exemplos. Em geral, vinhos frutados, com baixo teor alcoólico e, boa parte deles, meio doces.
Nesta mesma feira, a única marca de vinhos francesa que me chamou a atenção foi a Fat Bastard (bastardo gordo). Não é que os vinhos franceses começam a falar inglês? E só há uma razão para isso estar acontecendo: há espaço somente para quem fala a língua do consumidor, seja ela qual for. Deve-se compreender o que o consumidor quer e entregar isso, sem imposições. Trata-se de, humildemente, ouvir e aprender. Os conservadores não precisam se preocupar: o sotaque garantirá a diversidade.
Júlio César Kunz é diretor-executivo da Dunamis Vinhos e Vinhedos. Engenheiro de alimentos pela UFRGS e mestre em gestão e marketing do setor vitivinícola pela Universidade Paris-Ouest (Nanterre - La Défense).
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