domingo, 27 de fevereiro de 2011

A Burocracia do Vinho



DE BUROCRATAS todos temos um pouco! Mas em nenhuma parte do mundo esse ímpeto legislador é tão marcante como na “velha Europa”, onde tradições e costumes amiúde se confundem com obrigações e normas. De tradição até imposição, o passo é curto e o compasso demasiado ritmado. O mundo do vinho, tradicional como poucos, está especialmente sujeito a estes enredos onde as proibições e os erros do passado são perpetuados com assomos de glorificação. Tradição e imposição são noções que, no panorama vinícola europeu, rimam. As denominações de origem, com os constrangimentos condizentes, correspondem a uma criação francesa do início da década de 30 (do século passado), prática que deu origem ao sistema quase universal do continente europeu. As denominações de origem fundamentam-se na observação empírica, na prática da experiência centenária, na oralidade de conhecimentos passados de geração em geração. A experiência alimentada por séculos de rotinas, a enunciação da noção de qualidade, a identificação das castas consideradas aptas para um “terroir” específico, a definição de métodos de poda e condução, a delimitação de níveis mínimos de grau alcoólico conduziram à criação de regras e simultaneamente a coações aos agricultores de uma região delimitada. Este é o modelo francês inicial, o protótipo que justificou a criação das principais regiões históricas francesas. O conceito, quando exportado para as diferentes denominações que revestem a Europa, perdeu a sua validade, por não cumprir os valores base da tradução de uma experiência secular.

Muitas regiões portuguesas e europeias foram criadas por legisladores sem experiência, por vezes por simples burocratas, que de forma artificial ou pouco conhecedora legislaram sobre algo que desconheciam. É essa realidade que explica a escolha despropositada de determinadas castas obrigatórias ou o impedimento de castas válidas em muitas denominações nacionais e europeias. A castração das regras firmes definidas no modelo europeu implica um imobilismo forçado e, em alguns casos, uma forte limitação comercial face a países com legislações mais folgadas. No Novo Mundo, em países como a Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Chile, Argentina, Estados Unidos da América e Canadá, os impeditivos legislativos são quase inexistentes. O credo vigente nestes países é que não deve existir qualquer tipo de desculpa para maus vinhos e que, independentemente da tradição, o fundamental é apresentar vinhos bem feitos, vinhos consistentes e fiáveis. Como tal, não existe qualquer tipo de limitação ou orientação na escolha de castas, solos, tempos de estágio, rendimentos por hectare, etc. As regras são definidas pelo mercado e pela consciência de cada produtor. Promove-se a confiança num produtor em detrimento da confiança numa região. As uvas são compradas em qualquer ponto do país, permitindo diluir o peso de fatores climáticos que impõem o carácter de cada colheita. Pretende-se criar vinhos uniformes, consistentes, imutáveis ano após ano, vinhos que permitam alimentar uma ligação de confiança e previsibilidade no consumidor. A padronização do vinho! A liberdade de escolha é o conceito mais atraente da filosofia do Novo Mundo. E é também a sua melhor arma, por ser flexível e por diminuir o tempo de reação a ameaças como o aquecimento global. Mas também ajuda a despir os vinhos de temperamento e carácter, convertendo-os em meros produtos agrícolas/industriais sem histórias para contar. Encontrar um ponto de equilíbrio entre a proibição europeia e o liberalismo feroz do novo mundo permitiria a criação de vinhos portugueses que tivessem origem em diferentes regiões nacionais, ou em vinhos europeus com origem em distintas regiões europeias. Porque não?

O texto acima foi extraído da Revista Portuguesa Blue Wine.

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