Quando foi publicado o primeiro Decreto do governo ditatorial de João Franco, em 10 de Maio de 1907, o que estava fundamentalmente em causa era o regresso ao regime protecionista que tinha beneficiado os vinhos do Douro desde o tempo do Marquês de Pombal. Todavia, na discussão parlamentar que deu origem a este diploma legal, abriu-se a possibilidade de estender algumas medidas proteccionistas a outras regiões, 18 no total, sendo 4 de vinhos licorosos e 14 de vinhos de pasto, como então se dizia. De todas as regiões previstas no referido Decreto, apenas foi regulamentado na altura a produção e comércio dos vinhos do Porto (1907), Madeira (1909), Dão (1910), Colares e Bucelas (1911). O Dão tornou-se, assim, a primeira região de vinhos não licorosos do país a ser demarcada e regulamentada, isto é, na terminologia actual, a primeira denominação de origem controlada (DOC) de vinhos tranquilos em Portugal.
E porquê? Porque se antecipou o Dão às extensas e produtivas regiões dos Verdes, Torres ou Cartaxo, ou aos vinhos de qualidade comprovada da Fuzeta, Carcavelos ou Moscatel de Setúbal?
Porque o Dão tinha vinho, tinha prestígio e tinha peso político. Tinha vinho, porque já na altura beneficiava de uma elevada concentração produtiva, abastecendo a importante cidade de Viseu, outras cidades do litoral, sobretudo o Porto, e até alguns mercados externos, como o Brasil e a França, no tempo da filoxera. Ainda antes da construção da linha de caminho de ferro da Beira Alta, por onde passou a sair da região, o vinho era já transportado por via fluvial através do Mondego, da Foz-Dão à Figueira da Foz, e daí para outros destinos por via marítima.
Tinha prestígio, pois tinha preços mais elevados que a média nacional, era uma região referenciada e elogiada pelos técnicos agrícolas da época e marcou presença nas grandes exposições nacionais e internacionais da altura. Os principais especialistas dos finais do século XIX teceram rasgados elogios à região e aos seus vinhos, como António Augusto de Aguiar ou Cincinato da Costa; os vinhos do Dão foram premiados em exposições nacionais e internacionais, como em Lisboa, Londres, Berlim e Paris; algumas quintas eram pioneiras e modelo a nível nacional, como a quinta da Ínsua; grandes produtores eram conhecidos a nível regional e nacional, como o Conde de Villar Secco, o Conde de Santar ou José Caetano dos Reis, para além de grandes nomes da política e do associativismo agrícola, a maioria deles grandes vinicultores da região.
Tinha peso político, porque era dirigido por homens com projecção nacional, respeitados pelo seu nível económico, social e político. No período que medeia entre 18 de Setembro de 1908, data da primeira delimitação da região, e a sua regulamentação em 25 de Maio de 1910, foi exercida uma intensa pressão social e política pelas forças sociais e políticas da região, nos jornais locais e nacionais, no Parlamento, em reuniões sectoriais, etc. Estas forças eram diversas. Instituições agrícolas importantes, como os sindicatos agrícolas de Nelas e Vila Nova de Tázem ou a Liga Regional dos Agricultores da Beira. Só o primeiro destes sindicatos contava na altura com 400 sócios e exportava vinhos para Santos (Brasil) e Colônias. Homens ligados ao associativismo agrícola, como Pedro Ferreira dos Santos, José Caetano dos Reis ou Joaquim Paes de Brito. Sobretudo o primeiro era um dirigente de projeção nacional, com obra publicada (“Guia Pratico das Associações Agrícolas em Portugal”, Ed. RACAP, 1904) e muito respeitado e influente na Real Associação Central da Agricultura Portuguesa. Autarcas, como Joaquim Paes da Cunha, presidente da Câmara de Nelas. Representantes regionais na Câmara dos Deputados, como Affonso de Mello, António Pereira Vitorino, José Vitorino, Cabral Metello ou José de Matos Cid.
E hoje, 100 anos depois? De entre os chamados vinhos maduros, o Douro mantém a sua hegemonia. Para além do vinho do Porto, que lhe deu pergaminhos, produz agora também vinhos tranquilos de qualidade. O Alentejo, outrora insignificante, é hoje uma região importante, graças à força da grande propriedade e às novas técnicas de produção que lhe permitiram contornar as temperaturas excessivas, típicas da região. Quanto ao Dão, depois de fazer a sua travessia do deserto, renasce agora rejuvenescido e em força.
Durante mais de 50 anos, o Dão foi confundido com outras produções indiferenciadas. A política vinícola do Estado Novo, muito pouco atenta aos vinhos de qualidade, privilegiou a regulação dos mercados e o abastecimento barato das grandes cidades do Continente e Colónias. Porém, a partir de meados dos anos 80, a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia e o aumento do nível de vida da população portuguesa vieram dar novas oportunidades à produção de vinhos de qualidade.
E o Dão não se fez rogado: reconverteu as vinhas, mudou os sistemas de produção do vinho, criou uma nova elite empresarial. Hoje, como ontem, empresas líderes do mercado não abdicam de uma presença forte no Dão; antigas casas senhoriais tornaram-se marcas emblemáticas; novos capitais apostaram na viticultura regional; partiu-se à conquista do mercado internacional. Alicerçada num século de história, a Região Demarcada do Dão procura hoje aliar a maturidade já atingida a uma nova imagem de juventude e modernidade. Será esta a aposta do Dão, 100 anos depois.
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